Descrição
Atenção: o escritor está nu! Em “Atrás da Escrita”, FMR encena um striptease literário valendo-se de raro despudor. Aqui fundamental para seu propósito maior: transportar os bastidores da vida literária para o centro de um palco iluminado. Ou seria uma mesa de autópsia? Pois é com um satírico bisturi que FMR disseca os sórdidos pormenores do mundo editorial, seus escritores e leitores, festivais e editores, igrejinhas e medalhões. O livro nos apresenta à Lucília, uma jovem e apaixonada leitora que vai a um festival para ouvir a consagrada autora Alexandra Matos Oliveira. A “Autora-Salvadora” logo irá surtar numa conferência e, aos poucos, o festival literário se transforma num neurótico labirinto em areia movediça. Pelas mãos e olhos de Lucilia, também chegaremos a aventuras que envolvem um manuscrito proibido, escondido no stand de um tresloucado editor italiano. E mais não conto, para guardar segredo. Fugindo das armadilhas de uma literatura condicionada por demandas políticas ou de mercado, FMR tira todos os fantasmas debaixo do tapete e inventa alguns novos. Estamos entre adultos aqui: não há intenções bonitinhas nesse corajoso livro. FMR não está preocupado em sair bem na foto para a posteridade, com mais um texto daqueles cheios de boas intenções e certezas morais. Ao contrário: seu olhar corrosivo reafirma a literatura como uma máquina de perguntas. A única coisa, talvez, que ela “deva” ser.
JP Cuenca
Este romance de estreia apresenta-nos um escritor cujo engenho consiste, entre o mais, em saber falar das coisas por dentro falando delas por fora, e em saber falar das coisas por fora falando delas por dentro. Festivais literários, mercados editoriais e crises de inspiração são temas normalmente entendidos como estando do lado de fora dos livros, sobretudo quando comparados com questões semânticas, estruturas narrativas e digressões sobre Horácio, estas do lado de dentro. Francisco Mouta Rubio propôs-se a escrever, de uma vez, uma ficção sobre todas essas coisas a partir de todos os ângulos, deixando-nos, sobre si, a seguinte pergunta: é um leitor que a sua geração ganhou, ou um escritor que à partida se perdeu? A melhor fuga a esta pergunta encontra-se, por enquanto, no seguinte excerto:
«O romance é o lugar para todas as fórmulas imaginativas e para se abordar quantas coisas diferentes, mas é típico dos principiantes quererem enfiar todas as ideias e frases dentro do seu primeiro texto. Para além disso, saiba que ninguém vence a escrita num primeiro romance».
É que as melhores fugas a perguntas são aquelas que acertadamente concluem que a resposta é para depois. E Mouta Rubio está consciente disso, o que é sem dúvida um bom começo. Saber olhar para dentro a partir de fora e para fora a partir de dentro é sem dúvida um bom começo.
Guilherme P. Henriques, crítico literário
Agora é que é
Fico sempre admirado, e um pouco aflito, quando encontro alguém disposto a subir e a descer — porque a ficção é uma escada entre o fresco Céu e as lavas do Demónio — o caminho da literatura, as noites sem dormir, o trabalho diurno noutra coisa, os medos disto tudo. Passei por isso e passo por isso a toda a hora. Mais surpreendido fico quando me surge uma pessoa que conheci sem tais problemas e me aparece com eles na mão, acabados de acontecer. O FMR foi meu aluno na pós-graduação Arte da Crónica, na FCSH, e destacou-se pela observação das coisas e pessoas à sua volta, desenvolvendo uma veia cómica e satírica. Tal pedia a atenção de quem acredita, como eu, que o humor é aprofundar, não é aligeirar. Repito-me muito e agora repito o pobre Aristóteles que decerto disse “a tragédia e a comédia escrevem-se com as mesmas letras do alfabeto” (ou “com as letras do mesmo alfabeto”) menos vezes do que eu o cito.
Temos então aqui os resultados posteriores: uma sátira ao mundo das feiras literárias, universo em expansão que puxa — por forças gravíticas — na direcção de sóis que luzem e de buracos negros que engolem.
Ponho o próprio autor a fazer a apresentação dos espécimes, a taxinomia dos bichos que vão às feiras do livro. Por exemplo, os leitores:
“Gente em vias de extinção que, ao invés de trabalharem mais e contribuírem para a economia nacional, ao invés de terem vontade de rentabilizar cada esforço ou de trabalhar mais doze horas para ajudar o patrão, preferem a moeda mais rara do nosso tempo, talvez a menos desejada e em vias de extinção, essa mesma, o ócio. Estes preguiçosos hedonistas, vulgo leitores, assombrados pelo prazer de pensar e reflectir insistem em afrontar a economia produtiva com tempos mortos e vazios entre páginas desaceleradas. Os leitores ociosos são considerados pela maioria leitores odiosos, pois se o tempo não ocupado pelo trabalho serve para o colocar em causa, então este leitor ocioso torna-se um perigo real para a sociedade que trabalha e se escusa a aprofundar os temas que evita. Procuradores de tédio que ao entrarem numa livraria dizem numa voz interior bem alta e reconhecível pelo olhar, Aqui vou eu desgraçar a minha carteirinha mais uma vez.”
Há pouco eu até estava a ser simpático com o carrocel dos livros, mas o FMR apanha bem o que pode ser descrito como um pesadelo de festival literário, as suas manias e os seus manientos:
“Desembocam excursões turísticas oferecendo passeios pitorescos entre contracapas e badanas, recorda-se com carinho os autores bons, os autores mortos, e os que recusaram galardões, esses heróis de capa ao contrário. Todos Santos-Autores. Merecem, insistem, pelo menos, uma condecoração literária. É por esta altura, que os críticos crípticos, os melhores pensadores entre os melhores, pagos para serem escutados por centenas de almas empobrecidas, sempre tão ácidos, sagazes mas incapazes de aceitarem a crítica em ricochete, ganham protagonismo e santificam os seus malditos, que devem, só podem, ser desconhecidos. É assim todos os anos. Os escritores malditos são os excrementos que restam dos despojos comerciais desta feira, nomes apagados de história comercial, pela sua verve autodestrutiva, pelo prazer de cuspir no cânone que os rejeita, e afrontar o imoral, pela inclinação para o confronto total com a burguesia e com os costumes da sua época.”
E como vemos aqui um satirista preocupado (o FMR), agora uma breve observação desde o lado que o autor agora escolheu: o do escritor.
“O paciente leitor, a Lucília e todos os presentes nesta sala de palestras do Festival Literário 16 de Junho perguntarão agora porque raio Adolfo Alves Oliveira e toda esta gente necessita sempre de três nomes? Nada mais simples, meus caros: no meio editorial, se possuírem um apelido sui generis como Pessoa, Pessanha, Brandão ou até Spatha, não necessitarão de qualquer suplemento em forma de terceiro apelido para se manterem no ouvido de um destes atarefados agentes literários. Agora, se um desses apelidos comuns, isto é, de mero plebeu, for a única forma que temos para mostrar, a vida será mais complicada, pelo que devemos usar tudo o que temos e não temos, isto é: três nomes. É que a memória dos leitores tem mais onde ser gasta do que a relembrar quem é o António Antunes, o Rui Martins ou o José Peixoto.”
Tudo bem, tudo bem, e agora a ferroada:
“Os escritores, como o leitor sabe, são seres puramente intelectuais, almas suprahumanas que apenas se martirizam com as grandes questões e as preocupações estéticas enquanto se afogam no seu eterno agora para conseguir produzir a melhor obra possível para si, devoto leitor. “
Mas o que fez então correr o FMR para este mundo perdido? No fim, sem spoilers, espero eu, está a coragem, o risco e:
“A paixão pela falta de memória e pela oportunidade perdida de dizer o que queria e deveria ter dito é abraçada aqui mesmo: no livro e no escrever. Atrás da Escrita é a história mais complexa que já escrevi. Não sei sobre o que é, a que responde ou o que contém mas tanto de mim está aqui.”
Bem, caro FMR, um primeiro romance é o princípio. Boa sorte.
Rui Martins (e um Cardoso no meio)
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